Com dez canções inéditas, músico investe em disco com elementos brasileiros e reafirma sua marca como compositor.
É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre. Parece que Samuel Rosa seguiu os conselhos do ídolo Milton Nascimento. Afinal, não foi uma decisão nada fácil se despedir do Skank, uma banda tão bem-sucedida por três décadas – portanto, um lugar confortável, seguro – e seguir na carreira solo.
No entanto, era uma ação necessária. Começar tudo novo de novo, mas, agora, com o bônus de carregar consigo os louros de uma obra celebrada e um estilo de compor, cantar e tocar que virou uma grife, uma assinatura personalizada, daquelas que você usa como referência quando quer falar de uma música pop tão boa em letra e música que parece uma composição de Samuel Rosa. Aí a régua é alta.
E é essa marca tão reverenciada que dá o tom ao seu aguardado disco solo de estreia, “Rosa”, que será lançado no dia 27 de junho nas plataformas digitais. A arte da capa do álbum, de autoria Stephan Doitschinoff, traz em sua tipografia diversas referências às músicas que estão no repertório.
O título do disco é autorreferencial mesmo, como uma autoafirmação. A ideia é dar justamente continuidade ao legado e não criar uma ruptura, para demarcar esse rito de passagem. “Eu não queria agora buscar compulsivamente fazer algo que eu nunca fiz. Quero exercer o que eu sou”, afirma Samuel Rosa. “Minha marca é meu patrimônio.”
Samuel usa como uma espécie de mantra uma imagem que viu de perto: a de Paul McCartney tocando resignadamente “Hey Jude” ao piano, no show que ele apresentou no ano passado, para uma plateia pequena em Brasília, na qual o guitarrista, compositor e cantor mineiro estava presente.
“Hey Jude” é um sucesso antigo, de 1968, mas que o ex-Beatle segue mantendo em suas apresentações. “Eu brinco que o Paul mandou por telepatia para mim: ‘Samuel, não inventa, faça o que você sabe fazer’.
E o músico fez o que ele sabe fazer. “Eu quis soar eu mesmo, naturalmente, sem querer fazer um disco pretensioso. Deixei que o novo aparecesse de forma espontânea”, explica.
Ouvir as dez faixas do álbum “Rosa” é constatar como a composição de Samuel Rosa moldou o estilo do Skank como o conhecemos nesses anos todos, flertando com vários gêneros musicais, mas tendo o pop como um filtro, uma bússola.
“Rosa” foi feito de forma imersiva, intensa e orgânica, com menos máquina e mais banda tocando, inclusive quando a bateria eletrônica entra em algumas faixas. É também um disco mais brasileiro. Isso se deve muito a uma forte atmosfera musical que remete a Erasmo Carlos e Jorge Ben Jor, influências de Samuel, e a elementos bossanovistas. Tudo embalado no seu universo popular repleto de nuances.
Já as letras, que trazem vivências do próprio compositor, enveredam-se pelo universo do amor, para falar sobre relações em suas várias vertentes. É uma obra ensolarada, mesmo tratando de temas mais espinhosos dos relacionamentos.
Com exceção da faixa “Rio Dentro do Mar”, que foi composta por Samuel no final da pandemia, em 2022, essa safra de canções inéditas feitas especialmente para ‘Rosa’ nasceu de um processo peculiar desenvolvido por ele. Entre janeiro e fevereiro deste ano, o músico se isolava no quarto da sua filha, em Belo Horizonte. Ali ele fazia o que chama de ‘composição induzida’, durante três, quatro horas, sempre no período da manhã.
Depois do almoço, ele partia para o estúdio, onde encontrava os integrantes de sua nova banda, formada por Doca Rolim (violão e guitarra), Alexandre Mourão (contrabaixo), Pedro Kremer (teclados) e Marcelo Dai (bateria e percussão). “Era disciplina mesmo, eu me comprometi a chegar todos os dias com uma música nova de tarde e mostrar para banda, ainda que fosse ruim, boa, média, sem julgamentos”, conta ele.
A dinâmica era a mesma em qualquer banda: Samuel apresentava aos músicos o que ele havia composto e os demais davam suas sugestões e ponderações, como ‘coprodutores’. A diferença é que agora a palavra final foi dele. Nesses momentos, o compositor vivia uma dicotomia: ao mesmo tempo que almejava essa liberdade de decisão, ele sentia o peso de ter a última palavra. Ou como ele mesmo brinca, olhava para os lados e via que era o último da fila, que não tinha ninguém depois dele para opinar.
Mas a sinergia e a troca com sua nova banda funcionaram bem. Samuel Rosa está feliz com essa formação, que mescla músicos novos e mais velhos, e com a ideia de ir para a estrada com ela, levando a nova turnê, a partir do segundo semestre deste ano. Doca e Alexandre são antigos companheiros de música: o guitarrista o acompanhava no Skank e o contrabaixista estava com Samuel na primeira banda de sua vida. Já Pedro Kremer é conhecido tecladista da banda gaúcha Cachorro Grande e Marcelo Dai, talentoso baterista de uma nova geração, apresentado a Samuel por seu filho Juliano. O álbum conta ainda com Daniel Guedes na percussão das faixas ‘Flores da Rua’, ‘Me Dê Você’ e ‘Bela Amiga’.
Samuel divide a produção de “Rosa” com outro velho parceiro, o engenheiro de áudio e produtor musical Renato Cipriano.
Conexões
O processo de composição de Samuel fluiu mais rápido do que ele mesmo esperava. Os ensaios começaram no estúdio da Associação Querubins, uma entidade sem fins lucrativos que é dedicada ao desenvolvimento de crianças e jovens por meio da arte da cultura e do esporte, em Belo Horizonte, e as gravações se estenderam para o Estúdio Sonastério, instalado em meio a um cenário bucólico e com vista privilegiada para montanhas próximas à capital mineira.
Samuel chegou a mostrar para sua banda 20 canções e, juntos, chegaram aos dez. “Segue o Jogo” (Samuel Rosa) é o primeiro single do novo trabalho. É sobre o fim de relacionamento, só que tratado com certa leveza. Cada um segue sua vida, sabendo que o que fica é a lembrança de um amor que foi bom enquanto durou. “Você pra um lado/Eu pro outro/Tá tudo certo/Segue o jogo”, canta Samuel no refrão, que transmite aquela sensação de déjà-vu de sucesso infalível.
“Eu não fiz a canção especificamente para algum caso. Fiz para coisas que vivi.
E vejo nesses rompimentos o quanto de culpa que carregam as pessoas. As pessoas que saem de uma relação sentem culpa e as que ficam, também”, pondera Samuel. Nessa faixa, ele retoma o acorde de sétima maior, muito usado pela Bossa Nova e por Marcos Valle e Sérgio Mendes, que dá à canção um tom de leveza, um recurso usado por ele há tempos. Por isso, “Segue o Jogo” estabelece uma tênue ligação com outras obras compostas por Samuel anteriormente.
Enquanto isso, dentro do repertório do disco “Rosa”, “Segue o Jogo” está espelhada com a canção “Não Tenha Dó” (Samuel Rosa). Ambas as faixas falam sobre o desamor, mas, diferentemente de “Segue o Jogo”, o eu-lírico de “Não Tenha Dó” ainda carrega a dor da separação. “Você bem que acostumou/Com o meu implorar/Você disfarça, mas gostou/Do meu sofrer”, traz o refrão.
As duas canções têm temas parecidos, como se fossem capítulos do mesmo livro. “Não Tenha Dó” é outra bossinha também, mas já é mais MPB mesmo”, conceitua Samuel. Essa faixa ganha ainda um clima meio sessentista graças ao arranjo de cordas do canadense Owen Pallett, que trabalhou com bandas como Arcade Fire, Duran Duran e REM. “Eu adoro The Last Shadow Puppets, um projeto do Miles Kane com Alex Turner, do Arctic Monkeys. Eles têm dois discos e o som, principalmente do primeiro álbum, é bem retrô, lembra trilha dos anos 60, misturado com rock. Pedi para que ele fizesse um The Last Shadow of Puppets tropical.”
Pallett assina os arranjos de cordas também de “Palma da Mão” e “Rio Dentro do Mar”, outras duas canções do álbum. ‘Rio Dentro do Mar’ é uma metáfora que nasceu de uma percepção que Samuel teve durante a pandemia. Frequentando mais o litoral paulista, ele passou a prestar atenção no mar e viu que as correntes que se formam nele se parecem com rios dentro do mar. Coincidência ou não, “Rio Dentro do Mar” remete à sonoridade de “Dois Rios”, sucesso do disco “Cosmotron” (2003).
Além dos arranjos, “Rio Dentro do Mar” se conecta à “Palma da Mão” pelo tema que permeia ambas: o início de relacionamento de Samuel com a jornalista Laura Sarkovas, mãe de sua filha recém-nascida, com ela morando em São Paulo e ele, em Belo Horizonte, além da distância imposta pelas viagens do músico em turnê.
“Ciranda Seca” (Samuel/Pedro Kremer/Rodrigo Leão) foi feita para a personagem da série “Cangaço Novo”, mas também faz uma ode à mulher brasileira, guerreira, empoderada. A canção se encaixa com perfeição na trilha sonora do sertão nordestino, mas bem que poderia ser do sertão mineiro de Guimarães Rosa.
A deliciosa “Bela Amiga” traz um toque de lascividade da letra de Carlos Rennó, unida à música de Samuel, numa parceria que nasceu mais recentemente. “Bela Amiga” faz dupla com “Aquela Hora”(Samuel/Rodrigo Leão), duas músicas mais indie rock, mas que também têm uma dose de brasilidade. Uma trata de uma amizade que poderia virar algo a mais e a outra, sobre a separação de um pai e de um filho, que decide se emancipar e sair de casa.
Outra parceria com Rennó, “Me Dê Você” faz lembrar dos primórdios do Skank, mais especificamente o início da banda, com o disco “Calango” (1994), apesar de “Rosa” ser um disco menos eletrônico.
Com uma letra romântica, “Tudo Agora” (Samuel/Rodrigo Leão) é um reggae soul, que, no início, estava caminhando para ser um reggae no padrão que Samuel já fez bastante, mas ele mudou o percurso. “Aí foi para esse lado mais da batida do rap, se me permite ousadia. Ficou mais soul, pegou um tempero mais black music, com uma batida mais moderna”, diz.
Também sobre o amor, a ensolarada “Flores da Rua” (Samuel/João Ferreira) faz uma conexão com “Ainda Gosto Dela”, com pitadas de rock dos anos 1980 e beats, com vocação para ganhar versão remix e tocar nas pistas.
Destaque também para o recurso da harmonia vocal, que surge sutilmente nos backing vocals de Samuel, Marcelo Dai, Pedro Kremer, Doca Rolim e Alexandre Mourão, e ajuda a reforçar essa atmosfera ensolarada do disco.
Com “Rosa”, Samuel Rosa fala em consolidar sua marca, mas ela já está definitivamente consolidada não só no pop nacional, como na história da música brasileira. Agora é seguir o jogo, Samuel.
Informações: Adriana Del Ré
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